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Por Kizzy Ysatis

1º capítulo de O mistério do rio das rosas brancas, de Kizzy Ysatis, que sairá pela Novo Século. A sessão de autógrafos será no dia 05 de maio de 2012, no Espaço Terracota Editora. O livro estará disponível nas livrarias em abril.

“É hora educada porque a claridade é pouca”

No Brasil dos nossos dias.

O professor Luiz Caetano de Melo era assim: tinha 32 anos, 1,78 metro de altura e 85 kg. Lecionava Ciências e Biologia para alunos do ensino básico e, nas horas vagas, ban­cava o herói ambientalista. Possuía certo porte atlético graças aos três dias semanais em que se doava à musculação. Tinha os cabelos acastanhados e curtos; a pele pálida de quem nunca foi à praia; a barba bem cuidada (fazia dela seu refúgio); e olhos verdes e descontentes como pedras geladas de jade, veladas por lentes de óculos de grau sob grossas sobrancelhas que pendiam assim curvadas, como as de um cão ordinário e submisso. 

Trajava-se com alguma sobriedade. Roupas sociais fora de moda. Tons de cinza, marrom e verde-musgo eram os mais vistos em seus trajes. São as cores de quem não quer ser visto. Certa vez, cometeu o erro de deixar a balconista escolher a armação de seus óculos e, há cinco anos, perambulava por este planeta com a armação mais grotesca jamais criada.

O professor Caetano tinha uma postura tipicamente tímida e recatada, marcada por recalques não superados que se dedu­zia de suas atitudes retraídas. Assustava-se com os mais leves comentários sobre homossexuais, muito embora não houvesse afetação em seus modos. Ainda assim, nessas ocasiões, recolhia­-se mais, e sua voz, meio embargada e doentia, era motivo de riso entre a maioria de seus alunos. Ele era o que chamamos de patético e, portanto, não lhe tinham o menor respeito; quando muito, extraía pena dos mais dóceis.

Quanto mais clara a foto, mais escuro o negativo.

Pode imaginar — meu caro leitor ou leitora — um mundo em preto e branco? Pois se pode, saiba que esse era o mundo do professor Caetano. Um homem melancólico e ostracista que guardava lá longe, escondidinho na alma, um trauma brutal do qual jamais se recuperou, enquanto suas pálidas intenções ambientais davam apenas um vago tempero à sua vida insípida, em que até sua paixão pelo verde já andava meio acinzentada.

Para dormir, vários comprimidos de calmantes diversos se faziam necessários, ou então maços de Marlboro se extinguiam na janela, desfazendo vagarosamente os minutos insones na fumaça branca enrodilhada, que dançava enfeitiçada até desaparecer.

Morava sozinho num cubículo nos arredores da escola. Uma casinha miúda, cujos sobrados vizinhos roubavam-lhe a luz nas horas mágicas da alvorada e do pôr do sol. Portanto, nos raros momentos em que a luz lhe batia à janela, a encontrava sempre fechada. Sua única companhia era um peixinho dourado e sem nome que mal se movia no aquário pouco espaçoso, brilhando sobre o balcão minúsculo que repartia o espaço entre microssala e microcozinha. Nesse balcão, ao lado do aquário, flutuava um vasinho com rosas brancas que ele, não sem motivo, trocava periodicamente. Seu lar era decorado com simplicidade e vivia escrupulosamente limpo. Não se via outro espelho senão o do lavabo. Havia alguns livros organizados na estante. Os móveis eram minimalistas, porém decentes, e só estavam ali para seus propósitos específicos. O único porta-retratos exposto ficava sobre o criado-mudo e exibia-se sem a foto. E, na cozinha, des­tacava-se pequena pintura de um rio que surgia da floresta cujas montanhas azuladas, ao fundo, cercavam o horizonte de nuvens púrpuras. O rio passava por um vale sinuoso e estreito, onde a penha florida lhe sombreava a margem. Quando logo se imagi­nasse um paraíso desabitado, via-se despontar o diminuto frag­mento de um casebre isolado na floresta. Típico quadro que se vê na casa de gente humilde, com exceção das rosas brancas da ribanceira e da insignificância do casebre. Ah, e, fora isso, havia um santinho de São Sebastião, meio desbotado e amassado, colado atrás da porta da sala.

Era um homem bonito que se escondia num buraco pito­resco. Além do que, o professor nunca cultivou o mínimo de vaidade (digo vaidade, e não asseio). E não tinha ninguém com quem passar o tempo livre. Não possuía vida social e ele próprio concluiu que sua sexualidade fora um desgosto para seus pais e um castigo em sua vida. Desse modo, ele se mantinha na mais completa abstenção. Fingia-se órfão, esquecendo-se proposital­mente de visitar quem nunca lhe visitou. Privava-se de si por quem um dia viu morrer.

O despertador tocou, acordando Ítalo Mesquita. Mesmo tendo dormido tarde, seus olhos se abriram num instante. O último pensamento antes do sono concatenou-se ao primeiro, deixando-o alerta. É o que acontece quando estamos verdadei­ramente interessados em alguma coisa. O relógio marcava seis horas. A hora em que, na primavera, o dia é jovem, mas parece que é noite ainda. Ítalo gostava dessa hora. Mesmo sendo uma hora fria, desagradável por nos roubar o sono gostoso e nos extrair do conforto da cama e do quentinho do edredom. Gostava dessa hora porque se identificava com ela; definia-se particularmente assim: era homem, embora parecesse criança ainda. É hora educada porque a claridade é pouca. Entra res­peitosamente, aos pouquinhos, e nos deixa acostumar sem dor. É uma brandura carinhosa que nos apraz. A luz rarefeita tem passe livre, desliza assim delicada e terna pelas frestas da janela, pela treliça ou biombo; por debaixo da porta ou qualquer outro furinho. Ítalo gostava dessa luz. É quem primeiro nos dá bom­-dia. Então ele se espreguiçou. Dormia nu. Contorceu-se todo no ritual de exorcizar preguiça e, por fim, apertou com prazer o pinto duríssimo. Num puxão, arrancou a manta e pulou da cama, indo direto para o chuveiro.

Na mesa da cozinha esperava-lhe café, leite, pão francês e margarina. A mãe pronta para sair folheava uma revista femi­nina, bebericava café com leite e engolia dois ou três biscoitinhos amanteigados.

— Bom dia, mamãe — disse Ítalo, sentando-se e já trocado para ir à escola.

— Hoje vou sair mais cedo. Quer carona? — ela falou sem despregar os olhos da revista.

— A escola é aqui pertinho. Obrigado, mas não precisa.

— E daí? Aproveita a carona, bobo.

— A senhora sabe que não gosto quando chegamos juntos. Não sei por que pergunta.

Ela abaixou a revista. Ele passava margarina nervosamente numa das bandas do pão.

— Tem vergonha de mim, é?

— Lógico que não! Que ideia…

— O que é então? Arrumou um namorado?

— Nãããão!

— Então não seja teimoso e vem comigo hoje.

— Por que tem que ser hoje? A senhora que é teimosa. Já disse que não precisa. Não começa.

— Eu sei que não precisa, mas por que não hoje? Qual o problema?

— Mamãe, pega mal eu chegar com a diretora. Nossa! Já falei umas mil vezes.

A mãe suspirou e voltou os olhos emburrados para a revista.

— Ai meu Deus do Céu, viu?!… Sou sua mãe.

— Ah, começou… Sim, é minha mãe e eu te amo; mas tam­bém é a diretora.

— Quanta bobagem!… Não tem nada a ver.

— Tem tudo a ver — disse logo e mordeu o pão. — A senhora assusta todo mundo. Já cansei de dizer, mas a senhora parece que não me escuta, pô!

— Olha a educação… Ainda acha que eu espanto seus colegas?

— Não só isso; atrai um monte de puxa-sacos também.

Ela sorriu balançando a cabeça e dando de ombros.

— Tudo bem. Eu não ligo. Vai a pé então.

— Normal, sempre fui. Não é agora no último ano que eu vou fazer diferente.

Mas ele ia! Ah, ele ia. Ítalo vinha planejando há muito tempo. Estava tudo decidido.

 

 

* O livro ganhou o prêmio de Honra ao Mérito no concurso internacional de literatura da UBE.

* A arte de capa é da Celtic Botan.

* Embora mais conhecido por sua trilogia vampiresca, Kizzy Ysatis também se arrisca em outras searas.

* Citação do início do capítulo que, para não enlouquecer com a formatação, eu joguei aqui para baixo:

Eu vi uma rosa

– Uma rosa branca –

Sozinha no galho.

No galho? Sozinha

No jardim, na rua

Sozinha no mundo.

De Manuel Bandeira, Eu vi uma rosa

Um pensamento em “O mistério do rio das rosas brancas, romance de Kizzy Ysatis

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