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Por Eric Novello

Há alguns anos, no maior evento de literatura especulativa do país, o Fantasticon, discutíamos qual seria o verdadeiro valor de uma publicação impressa para o currículo de um autor. Nas entrelinhas, nos perguntávamos se sair em papel era mais importante do que escrever em um blog, por exemplo. Não era uma questão de qualidade, e sim de status, e nós sabíamos disso.

Por ser ignorada pelos grandes grupos editoriais, curiosamente os mesmos grupos que hoje se curvam e pagam milhões em leilões de direitos autorais por títulos de young adult, a literatura especulativa brasileira padecia de uma quase invisibilidade, salvo raros pontos fora da curva. Não foi surpresa então que a internet tenha se mostrado como uma opção viável para escoar a produção dos autores e ajudá-los a chegar a um público que, acredite se quiser, alguns se perguntavam se de fato existia. 

Por um momento, parecíamos mesmo convencidos de que não havia nada demais em ter um blog como principal suporte para nossos trabalhos e levantávamos a bandeira com orgulho. Como consequência, proliferaram os blogs literários e os e-zines, muitas vezes feitos por autores para autores, uns resenhando os outros e alguns resenhando a si mesmos.

Cinco anos se passaram e o mundo girou tão rápido que é difícil não perceber as mudanças. Hoje, editoras do mundo inteiro discutem como fazer uma transição suave para a era dos e-books e já há quem debata o que virá após o formato de texto puro utilizado nessa década.

O curioso é que, enquanto o “virtual” evoluía para algo além do blog de contos ou daquele grupo de amigos montando um e-zine, o papel também ganhou espaço e editoras independentes começaram a apostar na literatura de gênero. Em paralelo, se criou uma base de leitores de literatura especulativa, boa parte graças aos sucessos estrangeiros que ajudaram a turbinar essa mudança.

Cada um desses pontos valeria uma discussão mais elaborada e acalorada, mas o nosso foco aqui é o fetiche do papel. No fim das contas, com a possibilidade de publicação em formato impresso (ou no formato virtual com o carimbo das editoras de impresso), os autores de literatura especulativa migraram dos blogs para as coletâneas que, de certa maneira, assumiram o papel de divulgar novos nomes e levar conteúdo de rápido consumo aos leitores.

Pensando nesse boom e no fechamento de muitos blogs, entrei em contato com alguns editores para saber como eles enxergam o papel das coletâneas hoje dentro de suas linhas editoriais e como eles as organizam. Uma informação que vale de registro dessa etapa da evolução do mercado e que pode ajudar a orientar novos autores nos próximos passos.

Gianpaolo Celli, da Editora Tarja, comentou que ao planejar uma coletânea, são os autores da casa os primeiros a receberem o convite: Se eles já publicaram [com a gente], é evidente que possuem a qualidade requerida. Verificamos o gênero que o autor publica e, se achamos que ele se encaixa, enviamos o convite.”

Além de aproveitar os autores já publicados, todos os editores bateram na tecla de que as coletâneas são uma ótima forma de revelar novos nomes, e com o Gian não foi diferente: “Podemos também abrir a coletânea, e com isso aumentar o quadro de talentos da editora. Para a Tarja, a ideia é trabalhar as coletâneas como um investimento na formação, no desenvolvimento, e no nome de autores potenciais.”

Se você chegou agora, vale comentar que a Tarja hoje publica nomes como China Miéville e Jeff Vandermeer, mas se manteve nos primeiros anos apenas com títulos nacionais.

Eu falei também com o Samir Machado, da Não Editora. Recente no mercado quando comparada aos gigantes da literatura, a Não tem como espinha dorsal a literatura mainstream e já esteve entre os finalistas do prêmio Jabuti. Um dos sucessos da editora, entretanto, é a coleção Ficção de Polpa, centrada em literatura de gênero.

Graças ao Samir Machado descobri que a coleção tem tudo a ver com a criação da própria editora: “Temos um carinho especial pela coleção, pois foi através dela que a Não Editora começou. Foi através da seleção dos contos que acabamos nos conhecendo todos – eu, a Luciana Thomé, o Antônio Xerxenesky, o Rodrigo Rosp, o Guilherme Smee e o Gustavo Faraon. Foi o processo de editar e divulgar o livro que percebemos o potencial de criarmos a nossa própria editora.”

Além do carinho pessoal, Samir Machado falou também do lado comercial do projeto: “[A Ficção de Polpa] é um dos nossos projetos de maior visibilidade, mesmo que as vendas não sejam exatamente num nível de best-seller, o primeiro volume já foi reimpresso quatro vezes e sempre recebo feedback de leitores elogiando e pedindo que publiquemos mais volumes.”

Por saber que muitos novos autores leem o site, um dos pontos que levantei no e-mail com todos os editores foi o método de seleção. Segundo o Samir: “Sempre busquei selecionar tendo como critério a qualidade do texto, independente dos autores serem ou não conhecidos do público, ou serem ou não meus conhecidos, e sempre que possível equilibrar entre autores estreantes e outros que já tinham obras publicadas.”

Alguns dos autores, comenta ele, depois publicaram livros solo com a editora. “O Rafael Jacobsen [publicou] o seu Uma Leve Simetria, e o Antônio Xerxenesky o Areia nos Dentes, por exemplo.”

Se a Tarja e a Não Editora ressaltam a importância das coletâneas para a descoberta de novos nomes, a Editora Terracota tem atuado em outro nível na formação dos autores, ao unir oficinas literárias com a posterior publicação de seus alunos.

Cláudio Brites, editor, foi direto ao ponto: “Vejo a coletânea como uma ação de guerrilha. Um livro de autor solo é uma pistola, que abate um leitor por vez. A coletânea, uma minigun cuspindo seus projéteis para todos os lados. Em uma ação conjunta, os autores somam forças para divulgar seu trabalho e, claro, o da editora.”

Sem esconder o jogo, ele falou que nem tudo são flores, e que se a chance de sucesso é grande, também existe o outro lado: “Uma coletânea mal pensada, carente de equilíbrio na qualidade de seleção dos textos, pode acertar um civil desavisado, e logo a editora se queima, o leitor se emputece e os autores são colocados em uma vala comum.”

Quem acha que o Cláudio Brites está atirando aleatoriamente se engana. Ele fala com conhecimento de causa: “Eu já organizei coletâneas superpopulosas em um passado negro e por experiências posso dizer que são um tipo de insanidade injustificável, desperdício de energia e diluição de bons trabalhos.”

Passado o desabafo, pedi que ele comentasse como é essa coisa de juntar as oficinas com o preparo de coletâneas. Logo de cara, ele falou da mistura de autores novos e já estabelecidos também comentada pelo editor da Não Editora.

“Os pilares da editora Terracota foram erguidos nas costas das coletâneas. Começamos com trabalhos que misturavam autores experientes com outros que ainda buscavam um espaço no palanque. Um tipo de apadrinhamento, talvez. Deu certo, alguns dos autores se beneficiaram da qualidade dos trabalhos e estão por aí hoje, em cena. Hoje, mudamos o perfil, e as coletâneas são resultado das oficinas ministradas na Terracota. Textos que são acompanhados pelo grupo, que são aprimorados até o máximo de cada um dos participantes.
[Depois disso,] professores e alunos se misturam em pólen 90 gramas. Se é um caminho melhor ou pior, só os leitores podem dizer. E os críticos, bem, eles ainda existem?”

Com uma editora que nasceu de um blog literário (que ainda existe), M.D. Amado também participou da nossa conversa. O site Estronho e Esquésito, que originou a editora Estronho, está no ar há mais de dez anos e serviu de espaço de divulgação para um número incontável de autores. Ele falou rapidinho sobre a proposta da editora:

“A Editora Estronho surgiu com o principal objetivo de revelar (ou dar mais oportunidades) a novos autores, e, para nós, as coletâneas são fundamentais. Foi através delas que descobrimos autores excelentes que publicaram livros solo conosco ou que já tiveram seus livros anunciados para breve.”

Assim como o Samir Machado, o M.D. Amado deu alguns exemplos de autores que migraram das coletâneas para os livros solo.

“Posso citar a Valentina Silva Ferreira (Distúrbio), Natália Couto Azevedo (Reino dos Sonhos), Nikelen Witter (Territórios Invisíveis), Lemos Milani (A Ascensão da Casa dos Mortos) e Ghad Arddhu (Gehenah) entre outros que ainda estamos negociando. Todos eles chamaram a nossa atenção nas diversas antologias que lançamos em pouco mais de um ano de editora.”

E parece que esse celeiro de autores chamou a atenção de outras editoras também, que acabaram fechando contrato com os novos nomes publicados nas coletâneas da Estronho. Mais um sinal de que o mercado anda aquecido pelo menos na etapa de publicação e formação de catálogo. Três deles, por coincidência, você conhece aqui no artigo Novos autores para se ficar de olho em 2012.

Marcelo Amado termina dizendo que embora pense em aumentar o número de romances e publicar livros de não-ficção, as coletâneas temáticas sempre farão parte do catálogo.

Para encerrar, conversei também com o Erick Santos, editor da Draco, que tem adotado a estratégia de lançar contos diretamente no formato digital, além das publicações em papel. A editora publica principalmente livros de ficção especulativa, mas também abriu as portas para a literatura mainstream. Sobre a questão das coletâneas, ele falou o seguinte:

“As coletâneas são o principal método para encontrarmos novos autores. É difícil fazer a triagem de tantos manuscritos de romances. Perfis e estilos ficam muito mais evidentes em uma leitura de conto. Autores como Cirilo S. Lemos e Douglas MCT apareceram para a Draco primeiro nos seus contos, e a Ana Cristina Rodrigues, uma das autoras que mais publica em diversas casas, continua sua atuação basicamente só como contista.”

Sabe aquela história de que quem nasce para contista pode não ser um bom romancista? Na literatura especulativa isso parece não acontecer, embora tenhamos muito mais contos do que romances publicados, talvez ainda como reflexo da afobação de chegar ao papel de uma vez.

Veja o que o Erick Santos pensa sobre o assunto: “Um bom contista normalmente tem o essencial para a habilidade de contar histórias, o poder da síntese e a mistura dosada de ação narrativa, ambientação e desenvolvimento de personagens, mesmo com foco e clímax que tendem a ser únicos, ao contrário da fácil dispersão que ocorre com romancistas iniciantes.”

É claro que esses casos de sucesso estão atrelados à qualidade dos textos. Na pressa de publicar, em vez de dar um passo adiante, o autor pode acabar queimando o próprio filme e ter uma bela dor de cabeça com as pedradas.

“Marcar presença em diversas antologias é ainda o melhor caminho para chamar atenção. Com críticas positivas, virão mais convites para antologias e publicação de romances. No caso de avaliações negativas, o autor terá mais informações para entender o que tem feito de errado para se desenvolver como contador de histórias,” concluiu.

Parece piada, mas quando esse novo momento de produção se iniciou, tinha gente dizendo que não haveria leitores para todo mundo. Se na época o pensamento já parecia engraçado, hoje soa completamente deslocado da realidade.

Como fica evidente, o mercado evoluiu bastante, o espaço aumentou e as coletâneas se transformaram em uma importante via de acesso não só aos editores, mas também a autores e ao valioso público leitor que, digam o que for, está aí cada vez mais forte e atento.

5 pensamentos em “As coletâneas mataram os blogs de contos?

  1. Creio eu que, os blogs de contos são um otimo lugar para um autor amadurecer e tambem até mesmo entrar em contato com o publico, é sempre importante ter textos acessiveis para que seu trabalho seja conhecido, principalmente aqueles que desejam não só expressar suas ideias, mas tambem exercer a profissão de escritor. E é por isso, que eu mantenho ainda o meu blog de contos, apesar de ele já não ser mais o meu principal meio de mostrar meu trabalho.
    Já as coletaneas, as bem organizadas pelo menos, são umas especie de inicialização a carreira de escritor, são muito importantes, pois dão mais espaços a novos autores entrarem no mercado literario e dão uma amplitude maior ao trabalho do autor.

  2. há 3 anos acompanhava mais blogs de contos mainstream, então não tinha me dado conta dessa transferência de conteúdo dentro da literatura especulativa.
    acho que o mesmo conto é lido de forma bastante diferente nos dois meios. além de ter edição e revisão alheia nos contos impressos, só a posição do corpo (inclinado para frente ou para trás) no ato da leitura já dá um ar diferente e, arrisco dizer, mais demorado, atencioso e refrigerado às letras impressas. quero muito pegar um leitor eletrônico para me esticar e ler e-books dessa forma.
    embora blogs de contos possam ter bastante acesso e a possibilidade de obter feedback mais rapidamente, não há a triagem necessária para entregar um material finalizado nas mãos do leitor final. para cada conto bom em coletânea, há 50 não tão bons na internet. pouca gente tem tempo de ler tudo o que existe online. acho importantíssimo esse trabalho das editoras de procurar, selecionar e lapidar. trabalho pesado mesmo, aliviando o fardo do consumidor final. (não que eu queira desmerecer a importância dos blogs de contos, mas quero frisar que há neles menos leitores finais e mais leitores-autores treinando e pesquisando, o que lhes dá uma importância diferente com finalidade diferente)
    parabéns pelo artigo. sites bem escritos e refletidos assim fazem bom par com o crescente profissionalismo das letras fantásticas nacionais.

  3. O ponto, obviamente, não é publicar em papel. Publicar numa antologia paga e sem trabalho sério de seleção e edição, é igual a publicar em blog, ou pior (ao menos, no blog, sai mais barato). O que importa é que ser aceito por uma editora séria significa reconhecimento do trabalho como de qualidade e relevância potencialmente profissional, digno de ser selecionado e editado com seriedade, seja em papel ou e-book.

  4. Ótimo post. Como iniciante neste universo é bom saber que as coletâneas são importantes para a seleção de novos autores. Participar das chamadas abertas, além de excelente exercício é esperança de ter o trabalho reconhecido e editado com seriedade. Tomara!

  5. Mantenho ainda um blog de contos. Blog pessoal, claro. Concordo que as coletâneas têm muitas vantagens (a principal delas é que rendem dinheiro para as editoras e, portanto, obviamente, são um modelo de negócio, enquanto o blogue não rende nem para o blogueiro). A única vantagem do blogue é a possibilidade de romper seu isolamento quando você, como eu, vive isolado no interior e não tem como frequentar os eventos dos grandes centros, onde poderia fazer contatos e ter acesso a caminhos que o ajudariam a publicar. Fora isso, não vejo muito objetivo em ter um blog literário.

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